quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

  Ela ficou no carro estacionado por quase uma hora. Chorou, gemeu, pediu a Deus que a fizesse sumir, quem sabe um terrorista, uma bomba, uma estouro e um fim. Bebeu todo o líquido da garrafa de vinho, engoliu o seu remédio, estava com o corpo energizado.
  A loucura lhe agradava. Pediu que lhe levassem à um hospício, lá as pessoas vivem. Os gritos, as risadas, os corpos nus, sofrimento e alegria. Sentimentos devem ser vividos até a última gota da garrafa. Ou então, poderia simplesmente dopar-se para o mundo, apertar o foda-se. Tudo que ela queria era escapar às conveniências, às organizações que movem todos os corpos, como se existisse um só movimento.
  Um hospício, lá ela seria. Lá a existência mostraria sua cara, seus seios fartos, suas caspas nos cabelos. Estava cansada... Cansada desse mundo limpo, de coisas no lugar. Queria o não lugar das coisas, o trânsito (o trase).
  De dentro do carro observou... estava dentro, estava fora, agora estava fora de si. Estava neles. Aquelas senhoras lustradas, com seus cabelos de velhas traídas, aquelas senhoras segurando bandejas de doces. Deveriam estar indo para algum aniversário de família, ela pensou. Era domingo a noite, deveriam estar indo em direção à alguma tela, uma televisão do Faustão. Maldito Faustão, queria você no hospício comigo pra trocar uma idéia crua. Ela riu, deu gargalhadas, mexeu o corpo todo. Mas que patético o nosso viver... Vão se empanturrar de doces hoje, amanhã vão passar fome pra dimunuir um pouco de tanta gordura... Ah esses domingos brasileiros! Quando Faustão morrer, claro que ele só sai de dentro da tela quando morrer, o brasileiro vai precisar se readaptar, vão ter de aprender a olhar fora da tela.
  Aquele carro era confortável, lá fora que não era. Poderia ficar morando alí, até criar animais em torno do seu corpo. Aranhas, baratas, musgos, formigas, seu corpo... todos alimentando-se uns dos outros, um tipo novo de cadeia alimentar, até que seu corpo se transformasse numa coisa outra, numa comunidade de insetos e poeiras.
  Mas aquelas pessoas, quanta mediocridade. Lembrou-se da criança que ri como um macaco de circo, saltitante, a cada vez que recebe aplausos para suas mungangas, antes de voltar para sua jaula.
  Pelo retrovisor ela o avistou.... Pés descalços, pele encardida, coberto por uma roupa que mais parecia uma mortalha. Ou não seria aquele um uniforme de manicômio? Barba e cabelos longos, carregava uma grande sacola de estopa na cabeça.
  Sumiram de seu pensar as bandejas de doce, as velhas, o Faustão enquadrado na Tv e as risadas frenéticas.
  Alí estava o Sr. Equilíbrio. Um pé depois do outro, um homem em si, o momento tranquilo, a serenidade. O mundo não lhe pesava, carregaria qualquer coisa naquela sacola, pois seus pés eram firmes, tocavam inteiros no chão, um ser, naquele domingo tão brasileiro.

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