segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Isaura
ou
A seca

Na terra seca procurei gota d’água.
Já fui rio, e vento de rio que minha mãe levou.
Nas entranhas, raízes embrenhadas desse nordeste, segui.

Pequena, criança, do rio pra secura,
o sertão me areiou, o sertão me secou.

A água que carrego está no ventre.
Água que guardo, gota a gota, pros meus fetos.
Eles nadam dentro de mim.
Dão cambalhotas no lago que sou.
Peixinhos eles são, netos de São Francisco, 
o rio que a minha mãe levou.

Voltou pra casa, água,
e desaguou em sangue por dias a fio.
Sobre um tapete vermelho empapado,
no chão da sala.

Velei minha mãe, encharcada
Valei minha mãe, minha Nossa Senhora Aparecida
Vós que sois também de rio.

Valei as águas que carregam cascalhos das margens.
Tal qual feto, depois que estoura a bolsa d`água,
da água ela não vingou.
E eu vingo, a cada dia, a secura que me amarga.

.

Pequenas bonecas, pequenos meus filhos, pequena eu.
Pequenos meus anjos que se foram antes de gente virar.

Lavava cada menino na bacia,
debaixo do pé de juá,
quase todo fim de tarde.
Enquanto o maiorzinho ajudava a cuidar.

Meu filho termine aí de lavar seu irmão,
minha bolsa estourou,
vem água aí,
vem menino,
vou parir.

Esquenta água, chama parteira, põe força.
Expurga o ser que lhe pertenceu até não mais.
De filho do bucho pra filho do mundo.

Das bolsas que estouravam,
a água que escorria por entre a terra seca,
feito raiz de umbuzeiro querendo espichar.
Adentrando os grãos de pedra e a terra.
E a pele dos meninos secava, rachava.

Parto, Parto, Parto...
Dezenove barrigas
Dezesseis nascidos
Treze vingaram
Doze vivem.

Um ninho
De gente
De bicho
De cobra
De pássaro.

Bucho da terra às vezes é amável, às vezes não.
Bicho da terra às vezes é amável, às vezes não.

Mas nada trás gente de volta
(cansanção, enxada ou palma)
Na seca a gente escorre.





Porque é no bucho do mar que me encontro
Musgo mar moreno
Debaixo da espuma
Debaixo d’água, geleia esverdeada

Dos peixes, debaixo
Da casa dos tubarões
Nos entremeios dos corais
Onde só entra água e alga

E bichos estranhos
Numinosos
Bichos que a ciência não pescou para si

Debaixo da areia
Debaixo d’água tem terra
Matéria orgânica telúrica do mar

Obaluaê meu pai, sua calunga grande é minha casa.
Carrego criança doente pra lá se curar.

Pescador
Calda de peixe
Escama, guelra, barbatana
Concha se desfazendo

É lá pronde vão os pescadores que não voltaram:
Marinheiro que navegou demais
A moeda perdida
A carta jogada nas ondas.

Na sua morada sereias fazem danças giratórias
Tartaruga marinha carrega o tempo nas costas
E Jonas acredita que barriga de baleia é casa.



Você é forte, mais que um aço
Você corta
Esmiúça, estraçalha


De dentro, te vejo frágil
Pai, irmão, mãe, medo


Mas você é aço

Estilhaça, estraçalha

Você vai,
E te vejo tão de longe
Tão de dentro
De você


Beleza, encantamento
Você tem força
Eu, sua
Sua, com você


E eu
Eu vejo beleza
E me assombro


E de dentro vejo o frágil,
Você força.



Jogo da Velha

Essa mulher sou eu, essa mulher é você.


Essa mulher, que presenteia o seu #melhoramigo,
 aquele que marcou sua vida de um gesto em diante.
Aquele que insistiu no gesto, e feriu a carne.
Aquele que repete o gesto e não percebe.
Aquele que que faz mas faz que não vê.
Aquela que faz que não vê mas vê.
E a mulher forte, que luta todo dia pra despistar o lugar que é posta
Essa mulher que trabalha, que rala, que questiona, que manifesta
Vira menininha, pequena
Machucada, acoada
Mal ouvida
Mal comida
Essa menina não cresceu.
Tem menina dentro dela
Tem adolescente rebelde
Sonhadora
Queredora
Aceitadora
Doadora
Tolhida
Calada
.
De tantos silêncios se faz um coro: #
“jogo-da-velha” e um grito
“jogo-da-velha” um uivo
“jogo-da-velha” um sopro pra nunca mais voltar
“jogo-da-velha” faca amolada
“jogo-da-velha” um pedido
“meu primeiro abuso”
“meu melhor amigo”
tudinho MEU, como se eu o tivesse escolhido
como se eu o tivesse causado
como se eu o tivesse seduzido
“Ele levava café na cama e fingia de amigo, disse estar apaixonado”
“Eles me seguraram e enfiaram a língua em mim, falaram que eu ia gostar e eu só pedia pra parar”
“Ele abria a porta do carro... ele trancou a porta do quarto”
... ... ... .e o grito ficou mudo.
Nesses runidos, cantos, sopros... me confundo com elas...
Me confundo comigo.
Não, não passei por tudo isso.
Mas em mim, sinto, co-ti-di-a-na-men-te, o rasgo.
Jogo da velha, menina.

Jogo da velha.